Resumo da Phonologie der Tupinambá-Sprache, de Aryon Rodrigues

Neste post pretendo apresentar um resumo da fonologia do tupi antigo, conforme exposta na tese de doutorado de Aryon Rodrigues, intitulada Phonologie der Tupinambá-Sprache (1958), disponível apenas em alemão. A ideia inicial era traduzir por completo a tese. Já que este projeto foi abandonado, optei por ao menos fazer um resumo dela, dando maior ênfase à parte mais importante, que é da fonologia.

No texto, Rodrigues chama de “tupinambá” não a variedade falada da Baía de Angra dos Reis (RJ) ao norte, como em seus textos posteriores, mas o considera apenas como sinônimo de tupi antigo. Tupi seria um termo abrangente, que engloba tanto a velha língua brasílica, falada nos dois primenros séculos de colonização do Brasil, como a língua geral amazônica, ou o nheengatu, falado em tempos modernos. O “tupinambá” seria apenas o tupi falado nos dois primeiros séculos, portanto.

O “tupinambá” era a língua falada pelos povos de mesmo nome que habitavam a costa brasileira. Aqui, tupinambá não se refere apenas aos que eram assim chamados nos tempos coloniais, mas a todos os que mantinham com estes alguma relação cultural ou linguística. Com base em Mertráux, estes indígenas estariam presentes desde o rio Amazonas,ao norte, até a Cananeia, onde hoje é o estado de São Paulo. Percebe-se, como dito no parágrafo acima, que o território abrange áreas que mais tarde seriam consideradas como as da variante tupi.

A pesquisa de Rodrigues teve por base exclusivamente as fontes da língua tupi. Foram intencionalmente deixadas de lado comparações com outras línguas da mesma época, como o guarani antigo. O objetivo era obter um retrato fiel ao que as fontes quinhentistas e seissentistas apresentavam como sendo a língua tupi.

Após a introdução e a definição dos conceitos de “tupi” e “tupinambá”, é apresentada uma fonologia das línguas intermediárias (português, francês e alemão), mais precisamente da forma em que elas eram faladas nos séculos XVI e XVII. Em seguida, as fontes do tupi são analisadas tendo como base essas fonologias. Tenta-se estabelecer uma correspondência entre os grafemas e os possíveis sons da língua tupi. (Mais precisamente, os grafes, pois, como argumenta o autor, o grafema é uma representação gráfica do fonema, enquanto o que se busca, neste primeiro momento, são apenas os sons da língua.)

Após estabelecer os sons do tupi, parte-se para a interpretação desses dados – a fonologia. É a ela que se dedica o restante deste post.

Fonologia do tupi

A seguir, está a síntese da fonologia do tupi apresentada por Rodrigues em sua tese. É importante frisar que esta não é uma fonologia definitiva da língua. O próprio Rodrigues fez várias correções em trabalhos posteriores (lembrado que a Phonologie é de 1958). Nota-se também que, na tabela abaixo, tomei a liberdade de mudar os símbolos usados para representar os fones, usando no lugar os do Alfabeto Fonético Internacional (AFI).

FonemaRealizaçõesAmbienteexemplo
VOGAIS ORAIS
/a/[a]Todos. Em final de palavra, apenas quando tônico.[jaˈwarə] ‘onça’
[ə]***Final de palavra, quando este é átono. Em DC com [a][ˈtaβə] ‘aldeia’
/e/[ɛ]Provavelmente todos[ɛˈⁿdɛ] ‘tu’
/i/[i]Provavelmente todos[iˈtaɲaˈɛ̃] ‘tigela de pedra’
/ɨ/[ɨ]***Todos, menos em final de palavra, quando átono[ɨˈtu] ‘cachoeira’
/o/[ɔ]Provavelmente todos[ɔˈpak] ‘ele acorda’
/u/[u]Todos, menos em final de palavra, quando átono[taˈtu] ‘tatu’
VOGAIS NASAIS
/ã/[ã]Sílaba tônica[piˈã] ‘uma doença’
/ẽ/[ɛ̃]Sílaba tônica[ɛˈɛ̃] ‘doce’, ‘salgado’
/ĩ/[ĩ]Sílaba tônica[ˈtĩ] ‘nariz’
/õ/[ɔ̃]Sílaba tônica[ˈɾɔ̃] ‘pois’, ‘então’
/ũ/[ũ]Sílaba tônica[ˈɲũ] ‘campo
/ɨ̃/[ɨ̃]Sílaba tônica[ɨˈβɨ̃j] ‘parte interior oca’
SEMIVOGAIS
/j/[j]Início, meio e fim de palavra[ajɛˈβɨɾ] ‘eu volto’
[ʒ]Início e meio de palavra[aʒɛˈβɨɾ] ‘eu volto’
[ɲ]Início e meio de palavra[ɲamaˈnɔ] ‘nós morremos’
/w/[w]Início, meio e fim de palavra[ˈkwab] ‘atravessar’
CONSOANTES BILABIAIS
/p/[p]Início e meio de palavra (enquanto realização de /p/!)[ʃɛˈpɔ] ‘minha mão’
/b/[β]Início e meio de palavra[aˈβa] ‘homem’
[b]Final de palavra, em VL com [p][ʃɛˈɾub] ‘meu pai’
[p]Final de palavra, em VL com [b][ʃɛˈɾup] /ʃerub/ ‘meu pai’
/m/[m]Início meio e fim de plavra[aʒatiˈmuŋ] ‘eu balanço’
[mb]Início e meio de palvra.[tɛˈmbɛ] ‘lábio inferior’
CONSOANTES DENTAIS
/t/[t]Início e meio de palavra (enquanto realização de /t/!)[ʃɛkaˈtu] ‘sou bom’
/ɾ/[ɾ]Início, meio e fim de palavra[ʃɛkaˈɾu] ‘sou comilão’
[t]Fim de palavra, em VL com
[ɾ]
[mɔsaˈpɨt] /mosapɨr/ ‘três’
/n/[n]Início meio e fim de palavra[iˈnĩ] ‘rede de dormir’
[ⁿd]Início e meio de palavra[kɔmaˈⁿda] ‘feijão’
/s/[s]Início e meio de palavra[sɛˈtɛ] ‘seu corpo’
CONSOANTES PALATAIS
/ʃ/[ʃ]Início e meio de palavra[iˈʃɛ] ‘eu’
[tʃ]Início de palavra, em VL com [ʃ][tʃjaˈsɔ] (ou [ʃjaˈsɔ]) <t’îasó> ‘vamos!’
CONSOANTES VELARES
/k/[k]Início, meio e fim de palavra[ˈakə] ‘chifre’
/ŋ/[ŋ]Meio e fim de palavra[ˈaŋə] ‘alma’
[ŋg]***Meio de palavra[puˈŋga] ‘inchado’
***[ə]: vogal oral média central não arredondada
***[ɨ]: Não se sabe por que Rodrigues chama essa vogal de posterior (hinterer Vokal) e não central, como seria de se esperar. No AFI, a vogal oral alta posterior não arredondada é representada por [ɯ].
***[ŋg]: Rogrigues afirma não ser possível determinar se o grafema <ng> das fontes corresponde a [ŋg] ou [ŋ]. Portanto, o autor considera a existência do fone [ŋg] apenas como provável.

Legenda:

VL = variação livre
DC = distribuição complementar

Em vez de explicar em maiores detalhes cada um dos fonemas, o que seria por demais extenso, é mais vantajoso deixar de lado o que não é controverso e se focar apenas no que destoa das outras fonologias do tupi.

O que não há

Na fonologia apresentada na tese de Aryon, não encontramos:

  • A consoante oclusiva glotal [ʔ]: nenhuma menção ou alusão à sua existência. — Isso se deve provavelmente à decisão de Rodrigues de se basear exclusivamente nas fontes selecionadas, sem levar em consideração outras línguas geneticamente próximas, como o guarani. Os autores aduzidos na tese não abordam o fonema em questão.
  • [ɡʷ] como possível realização de /w/
  • O <y> enquanto semivogal (AFI: [ɰ]), representada na grafia de Navarro por <ŷ>, como em <apŷaba>.
  • [ʃ] enquanto realização de /s/ após vogais altas não arredondadas. — Erro grave da parte do autor. Tomemos como exemplo as frases Maria supé ‘para Maria’ e i xupé ‘para ele’. Se [ʃ], representado por <x>, não pode ser alofone de /s/ (como afirma explicitamente Rodrigues), teríamos de admitir que xupé e supé são duas posposições diferentes, sendo que ambas têm o mesmo significado. Evidentemente, tal conclusão não seria sensata, tampouco prática.
  • [u] como possível realização de /ɨ/. — Em ambientes pɨCu, onde C é uma consoante qualquer, pode haver alternância entre [ɨ] e [u] (pytuna, putuna, etc). Aryon trata variações desse tipo como um fenômeno de assimilação.
  • /ɲ/ enquanto fonema independente (e não apenas como alofone de /j/)

O que há

A seguir há os fones que não costumam aparecer em outras descrições da fonologia do tupi. Podemos mencionar:

  • [ə] átono em final de palavra ([‘aβə] em vez de [‘aβa]). — Tanto as fontes portuguesas quanto as francesas (e também a fonte alemã) indicariam a existência de [ə], para o autor. Nas fontes portuguesas, o <a> em final de palavra teria som de [ə]. O mesmo se pode dizer do <e> ao final de palavra nas fontes francesas, que na época era pronunciado (hoje em dia é mudo).
  • [b] oclusivo em final de palavra. — Na grafia portuguesa da época, <b> representava [β] em início de palavra e em contexto intervocálico. Podemos supor, portanto, que Rodrigues considerou um <b> em final de palavra como representação da consoante bilabial oclusiva [b]. O autor não é claro a esse respeito.
  • A consoante africada [tʃ] — conforme Rodrigues, o fone foi registrado apenas por Anchieta. Argumenta Rodrigues que o grafema <ch> na Arte só pode se referir ao som africado em questão, de acordo com a fonologia do português da época. Conforme o próprio Anchieta, “alguns pronunciam xiâ [ʃja], ou chiâ [tʃja] no lugar de tia [ti.a], dissílabo, como xiaçô ou chiaçô para tiaçô, ‘vamos!’ […]” (folha 23 e verso)

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