O município de Anchieta, no estado do Espírito Santo, foi onde o padre (e agora santo) José de Anchieta passou seus últimos anos, até sua morte, em 1597. O que poucos sabem é que, quando da sua morte, a localidade possuía nome de origem tupi. O lugar, que na época era uma aldeia, chamava-se, na língua dos nativos, Rerityba (pronúncia em tupi: [ɾeɾiˈtɨβa]), nome que, aportuguesado, resulta em Reritiba, na nossa pronúncia padrão do português brasileiro.
Reritiba – ou, mais precisamente, seu étimo tupi, Rerityba – provém de reri, ostra, e -tyba, um sufixo abundancial presente em muitos nomes de cidades, como Curitiba, Catanduva, Itaquaquecetuba, Itatiba, e outros. O nome significa, portanto, um lugar com muitas ostras.
Além do que nos informam os vocabulários antigos da língua tupi, um poema do próprio Anchieta confirma essa origem do nome. Intitulado “À Nossa Senhora”, o poema foi feito para ser recitado por oito meninos, cada qual encarregado de recitar um trecho em frente ao altar de Nossa Senhora, a quem o poema se dirige. Um dos meninos recita a seguinte parte:
Rerytyba, xe retama, i xuí xe ruri ké. "Xe rapixarĩ pabẽ, 'aretéangaturama t'asepiáne!" gui'iabo nhẽ. Aruretá kó reri, i pupé nde poipotá. Pé ku'ape, kunumĩ pu'ama'ubi xe ri, xe suí i guabo pá.
Cuja tradução é:
Reritiba, minha terra, dela eu vim aqui. "Ó meus companheirinhos, o feriado santo, hei de vê-lo!" dizendo eu. Trouxe muitas destas ostras, com elas querendo te alimentar. No meio do caminho, uns meninos investiram contra mim, de mim comendo-as todas.
Os trechos destacados com fundo amarelo mostram que o menino que fala frente ao altar diz que veio de Reritiba, sua terra, e que de lá trouxe muitas ostras, confirmando que o nome da aldeia de fato correspondia ao fenômeno a que ele alude, a saber, a presença de ostras.
Com o nome de Anchieta, homenageou-se um dos grandes personagens da história do município e do Brasil. Todavia, com esta e outras mudanças de nome ao longo dos séculos, perdeu-se um nome tupi, e um nome bastante antigo, inclusive, remontando ao primeiro século da história de nosso país.
Por fim, vale mencionar a variante Iriritiba. Certamente provém de ‘y + riri + -tyba, rio das ostras, possuindo portanto praticamente a mesma origem de Reritiba.
No começo do século XX, houve um intenso movimento de tupinização de municípios Brasileiros. O país viva uma época de forte nacionalismo, e buscava-se uma identidade nacional. Nesse contexto, a antiga língua indígena do Brasil foi usada como meio para formar essa identidade. Muitos municípios tiveram seus nomes de língua portuguesa substituídos por nomes tupis. Essa tendência foi reforçada por um decreto de Getúlio Vargas que estimulava tal prática.1
Todavia, o que poucos sabem é que, séculos antes, na região Amazônica, houve um movimento inverso: ocorreu uma campanha para RETIRAR nomes indígenas (em geral tupis) e colocar nomes portugueses – mais especificamente de cidades portuguesas.
O século era o XVIII. O Brasil vivia sob domínio da metrópole, isto é, Portugal. De lá, vinham-se decretando uma série de restrições ao tupi ou, mais precisamente, à língua geral (um tupi mais modificado com o tempo). A mais notória dessas restrições foi a proibição do uso dessa língua pelo Marquês de Pombal, mas houve outras, como a obrigatoriedade do uso do português nas missões jesuíticas. Pombal acreditava que os padres da Companhia de Jesus estavam criando um poder paralelo. Acreditava também que o tupi – ou a língua geral – era um obstáculo ao domínio português na região amazônica.
Nesse contexto, em 1758, Pombal ordena que seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador da Província do Grão-Pará (uma grande divisão territorial do Brasil, que na época era dividido em duas partes) – ordena que seu irmão retire os nomes de língua geral, de acordo com seu projeto político para a colônia. Xavier, então, viaja ao longo do rio Amazonas (e das baías próximas a Belém) e, no caminho, vai substituindo os nomes indígenas das aldeias (na época, eram apenas aldeias) por nomes de cidades portuguesas. Daí que todas as cidades ou distritos plotados no mapa abaixo sejam também nomes de cidades de Portugal – Óbidos, Santarém, Faro, etc.
Nomes de cidades portuguesas transplantados para o Brasil, em substituição aos antigos nomes indígenas (em geral tupis). 1- Beja (distrito); 2- Oeiras do Pará; 3- Melgaço; 4- Portel; 5- Carrazedo (distrito); 6- Veiros (distrito); 7- Sousel (distrito); 8- Almeirim; 9- Monte Alegre; 10- Alenquer; 11- Santarém; 12- Óbidos; 13- Faro; 14- Novo Airão; 15- Carvoeiro; 16- Barcelos
Na tabela abaixo, há algumas das renomeações feitas. A fonte dos dados é o IBGE. Em alguns itens, está apresentada a provável etimologia do antigo nome tupi.
Nome anterior a 1758
Nome atual do município
Surubiú (de surubi + ‘y, rio dos surubis, espécie de peixe)
Nem todos os nomes antigos eram de origem tupi. Sem dúvida, essa língua predominava na região amazônica, tendo sido trazida da costa para o interior pelos missionários e tornado-se a língua geral da área. No entanto, a Amazônia possuia – e ainda possui – uma vasta diversidade linguística. Os asteriscos (***) ao lado dos nomes indicam aqueles que possivelmente não têm origem tupi, seja devido ao nome da nação indígena que representam (como Tapajós, uma nação tapuia, não tupi-guarani) ou simplesmente por sua sonoridade.
Quanto à tabela, vale assinalar ainda que nem todas as cidades “vingaram”. Muitas das novas vilas criadas (Xavier também elevou as aldeias à condição de vila) passaram a ser, nos dias de hoje, apenas distritos de outros municípios. Cabe ressaltar ainda que, além dos exemplos listados, há ainda outras alterações, tanto em 1758 como antes, em 1756, e depois.
Em suma, o fenômeno aqui abordado diz respeito a uma onda de remoção de nomes indígenas por decisões políticas da Metrópole. Foi um fenômeno, sem dúvida, localizado, tendo ocorrido principalmente ao longo do rio Amazônas. Todavia, essa perda de nomes nativos foi sobejamente compensada pela nomeação tupi em massa no início do século XX. Este último fenômeno, aborado no primeiro parágrafo, foi abrangente, envolvendo todo o território nacional, e gerando um número bem maior de topônimos indígenas, com vistas a glorificar o passado indígena do nosso país – passado este que Pombal quis apagar e que, ainda nos dias de hoje, deve ser cuidadosamente preservado, não só para valorizar a língua falada nos primórdios do Brasil, mas tambem pela grande antiguidade da maioria desses nomes.
Notas
Fontes
GOOGLE. Google Maps. Disponível em: https://maps.google.com.br/. Acesso em: 30 nov. 2024. IBGE CIDADES. Brasília, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: www.cidade.ibge.gov.br. NAVARRO, E. Os nomes indígenas na geografia brasileira e sua importância para o estudo da organização do espaço. In: Notas e resenhas, Rio Claro, 20(2): 148-155, outubro 1995.
Há diversos casos em que a escrita de uma palavra afeta sua pronúncia. Não se trata de um caso de mudança linguística mais ou menos espontânea, natural, mas algo que surgiu devido à influência da língua escrita, isto é, devido aos símbolos arbitrários pelos quais optamos por escrever as palavras. Um desses casos está no meu post anterior sobre o bairro de M’Boi Mirim, em São Paulo, cujo nome passou a ser pronunciado “eme-boi mirim”, por ser grafado deste modo.
Algo semelhante se passou com os GOITACÁS, GOITACAZES, e variantes. Tal foi o nome de uma nação indígena “tapuia” (isto é, não tupi-guarani) encontrada pelos europeus no século XVI. Tinham, portanto, língua diferente daquela que os colonizadores encontraram por toda a costa brasileira – o tupi. Não sabemos qual língua seja essa, pois não nos foram legados registros.
GOITACÁ vem do tupi guaitaká. É desta forma que diversos autores do século XVI registraram o nome da nação: Anchieta, Jean de Lery, Hans Staden, todos eles escreveram seu nome com ‘u’. Como o nome se tornou, então, goitacá?
A resposta para isso está na ortografia. Mais precisamente, a ortografia do português arcaico. No século XVI (e talvez mais tarde, certamente), havia duas formas de escrever a semivogal ‘u’ (também chamada de ‘u’ breve, fonema encontrado em palavras como guaraná, aguentar, água, e eu). Hoje, escrevemo-la sempre com ‘u’, mas, no século XVI, admitiam-se duas grafias: ora com ‘u’, ora com ‘o’. Assim temos palavras como “ágoa” e “agua” para água, “goaçu” e “guaçu” para o sufixo aumentativo do tupi, guasu (que deu origem a topônimos como Iguaçu), etc.
Foi esta a origem – acredito eu – de goitacá. Por influência de grafias outras do nome, acabou por se consolidar uma forma que não tem embasamento nos autores que descreveram o tupi. A rigor, o nome da nação nunca foi pronunciado com ‘o’. Ao menos não originalmente. Em tupi, só a forma guaitaká, com ‘u’, é atestada.
Tal caso está longe de ser único. Os GUAIANÁS, outra nação tapuia, também possuem nomes alternativos: GOAYANÃ, GOYANÁ, entre outros. Neste caso, o nome que se aproxima do original – guaianã, do tupi – acabou por prevalecer sobre os demais. O próprio nome GOIÁS, estado do Brasil, pode ter origem em um suposto *guaiá, nome de nação indígena, em uma das propostas para a origem do nome.
Para concluir: qual o significado, afinal, de guaitaká? O étimo tupi é de difícil decifração. Haveria nele o verbo guatá: caminhar? Por eles serem nômades e andarilhos? Não sabemos.
Fontes
RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Phonologie der Tupinambá-Sprache. Universidade de Hamburgo, Alemanha, 1958. (Para a ortografia portuguesa do século XVI)
NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionario de Tupi Antigo: a língua indígena clássica do Brasil. (Para os nomes em tupi)
M’Boi Mirim, que é tanto o nome de um bairro, de uma subprefeitura, e de uma estrada, todos na cidade de São Paulo, claramente apresenta origem tupi (ou guarani, dado que seus primitivos habitantes parecem ter sido guaranis; o que importa é que em ambas as línguas o nome seria o mesmo, neste caso). Para saber o porquê de sua pronúncia ser do jeito que é, façamos uma digressão.
Em tupi (e em guarani), a letra ‘m’ permitia duas pronúncias diferentes, a depender do contexto: uma com ‘m’ mesmo, de maçã, e outra, mais oralizada, de ‘mb’. Este último som é bem característico de muitas línguas tupi-guaranis, bem como de línguas africanas, em especial as do grupo banto, que, assim como o tupi, emprestaram muitas palavras ao português brasileiro.
Quando esse som de ‘mb’ ocorria no meio da palavra, esta passava para o português da mesma forma, sem mistério. Daí que kambará, nome de uma planta, passou a ser CAMBARÁ, nome de uma planta.
Todavia, quando ‘mb’ ocorria no início de palavra, surgia um problema. Não há em português palavras que comecem com esse som. Portanto, é necessário fazer adequações à fonologia da língua que recebe o empréstimo lexical. Por esse motivo, o ‘mb’ em início de palavra tornou-se ora ‘b’, ora ‘m’. Assim, o tupi mbeiú, nome de um alimento, virou BEIJU no português brasileiro, e mokó (ou mbokó) virou MOCÓ.
O caso de M’Boi Mirim é particular. Seu nome vem do tupi mboia, que significa cobra, e mirĨ, pequena. Como mboia começa com ‘mb’, seria de se esperar que virasse BOIA ou MOIA em português (o que de fato aconteceu em palavras como BOIUÇU, MOGI-GUAÇU e muitas outras). Ocorre que, neste caso particular, o nome M’Boi Mirim foi aportuguesado de uma forma única: passou-se a pronunciar o nome da letra ‘m’.
Conforme explica a Folha de S. Paulo
M’Boi era uma das transcrições possíveis para a palavra indígena pronunciada como Em-boi ou Em-bu (vem daí o nome dos municípios vizinhos). Sem contato com a fonética dos indígenas (já expulsos do local), os imigrantes recém-chegados só podiam pronunciar conforme liam nas placas da estrada. Ficou “eme-bôi”.
Pretendo apresentar brevemente neste post o histórico da discussão acerca da etimologia de Curitiba e o que eu apresento como a etimologia definitiva do nome (ou quase isso). De início, afirmo que a capital paranaense teve seu nome oriundo da Língua Geral Paulista (LGP), conforme nos mostra o Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica, conhecido há quase um século, mas reinterpretado em 2013 como sendo um raro registro da LGP.
Breve história do debate
Que Curitiba significa pinhais, pinheirais, ou ajuntamento de pinheiros, é ponto pacífico há décadas. Curi (ou alguma palavra semelhante) significa pinheiro, tiba significa “ajuntamento”, e a cidade fica na região da mata das araucárias, que são – pinheiros. O que se discutia era qual o idioma de origem do nome, exatamante. Seria o tupi antigo, o guarani, a LGP? Ou seria ainda uma mistura de diferentes línguas?
O linguista Aryon Rodrigues afirma que o nome teve origem no guarani antigo kury’yb, pinheiro, conforme definição apresentada no dicionário de Montoya (1639). Infelizmente, não havia no dicionário em questão uma forma kuri pura, sem o ‘yb. Por isso, Rodrigues teve de percorrer o caminho mais difícil, que é explicar como kury’yb virou “curi” no nome da capital.
Décadas mais tarde, em 2013, o professor e acadêmico Eduardo Navarro publica seu Dicionário de Tupi Antigo (2013). Nele, afirma provir Curitiba de um hipotético *kuri da LGP. O asterisco justaposto à palavra indica que ela não é atestada, isto é, nunca foi encontrada em nenhum documento.
Ocorre que, no mesmo ano, foi publicada a tese de mestrado de Fabiana Raquel Leite, na qual sua autora propõe que o Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica (VELGB), já conhecido a décadas, seria um raríssimo representante da LGP, um desenvolvimento histórico do tupi, mas com elementos guaranis, portugueses e espanhóis. Nesse vocabulário encontramos:
CORI, CORY, CURU ou CURY pinheiro. – tuba ou túva, muitos pinheiros
Portanto, o princípio da simplicidade nos leva a aceitar essa fonte como a indicação da etimologia exata de Curitiba. É certo que o VELGB possui termos oriundos de diversas fontes, mas ao menos temos uma fonte que atesta a forma kuri, e com o significado de pinheiro (e não pinhão, ou algo parecido). Portanto, de fato, Navarro estava certo, e havia de fato um kuri na LGP, agora não mais hipotético, mas atestado.
Queretiba
Em textos antigos, encontramos ainda a grafia Queretiba. Ambos os “e”s representariam o “y”, uma vogal não existente no português. Essa forma de grafar o nome da cidade/região indicaria, portanto, uma forma kyry, oy kuru. Este último já está contemplado na citação acima (“CURU”). Como o significado é o mesmo, isso não altera a etimologia da palavra; apenas sua forma mudaria (kuru em vez de kuri).
LEITE, Fabiana Raquel, A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas, SP : [s.n.], 2013 NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionario de Tupi Antigo: a língua indígena clássica do Brasil. 1. ed. São Paulo: Global, 2013. OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica. In: Revista doArquivo Municipal, São Paulo, v. 25, p.129-174, jul. 1936b RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. O nome Curitiba. [S. l.: s. n.], [1995?]. RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Tesoro de la lengua guarani. [1639] Asuncion: Centro de Estudios Paraguayos “Antonio Guasch”, 2011
Neste post pretendo apresentar um resumo da fonologia do tupi antigo, conforme exposta na tese de doutorado de Aryon Rodrigues, intitulada Phonologie der Tupinambá-Sprache (1958), disponível apenas em alemão. A ideia inicial era traduzir por completo a tese. Já que este projeto foi abandonado, optei por ao menos fazer um resumo dela, dando maior ênfase à parte mais importante, que é da fonologia.
No texto, Rodrigues chama de “tupinambá” não a variedade falada da Baía de Angra dos Reis (RJ) ao norte, como em seus textos posteriores, mas o considera apenas como sinônimo de tupi antigo. Tupi seria um termo abrangente, que engloba tanto a velha língua brasílica, falada nos dois primenros séculos de colonização do Brasil, como a língua geral amazônica, ou o nheengatu, falado em tempos modernos. O “tupinambá” seria apenas o tupi falado nos dois primeiros séculos, portanto.
O “tupinambá” era a língua falada pelos povos de mesmo nome que habitavam a costa brasileira. Aqui, tupinambá não se refere apenas aos que eram assim chamados nos tempos coloniais, mas a todos os que mantinham com estes alguma relação cultural ou linguística. Com base em Mertráux, estes indígenas estariam presentes desde o rio Amazonas,ao norte, até a Cananeia, onde hoje é o estado de São Paulo. Percebe-se, como dito no parágrafo acima, que o território abrange áreas que mais tarde seriam consideradas como as da variante tupi.
A pesquisa de Rodrigues teve por base exclusivamente as fontes da língua tupi. Foram intencionalmente deixadas de lado comparações com outras línguas da mesma época, como o guarani antigo. O objetivo era obter um retrato fiel ao que as fontes quinhentistas e seissentistas apresentavam como sendo a língua tupi.
Após a introdução e a definição dos conceitos de “tupi” e “tupinambá”, é apresentada uma fonologia das línguas intermediárias (português, francês e alemão), mais precisamente da forma em que elas eram faladas nos séculos XVI e XVII. Em seguida, as fontes do tupi são analisadas tendo como base essas fonologias. Tenta-se estabelecer uma correspondência entre os grafemas e os possíveis sons da língua tupi. (Mais precisamente, os grafes, pois, como argumenta o autor, o grafema é uma representação gráfica do fonema, enquanto o que se busca, neste primeiro momento, são apenas os sons da língua.)
Após estabelecer os sons do tupi, parte-se para a interpretação desses dados – a fonologia. É a ela que se dedica o restante deste post.
Fonologia do tupi
A seguir, está a síntese da fonologia do tupi apresentada por Rodrigues em sua tese. É importante frisar que esta não é uma fonologia definitiva da língua. O próprio Rodrigues fez várias correções em trabalhos posteriores (lembrado que a Phonologie é de 1958). Nota-se também que, na tabela abaixo, tomei a liberdade de mudar os símbolos usados para representar os fones, usando no lugar os do Alfabeto Fonético Internacional (AFI).
Fonema
Realizações
Ambiente
exemplo
VOGAIS ORAIS
/a/
[a]
Todos. Em final de palavra, apenas quando tônico.
[jaˈwarə] ‘onça’
[ə]***
Final de palavra, quando este é átono. Em DC com [a]
[ˈtaβə] ‘aldeia’
/e/
[ɛ]
Provavelmente todos
[ɛˈⁿdɛ] ‘tu’
/i/
[i]
Provavelmente todos
[iˈtaɲaˈɛ̃] ‘tigela de pedra’
/ɨ/
[ɨ]***
Todos, menos em final de palavra, quando átono
[ɨˈtu] ‘cachoeira’
/o/
[ɔ]
Provavelmente todos
[ɔˈpak] ‘ele acorda’
/u/
[u]
Todos, menos em final de palavra, quando átono
[taˈtu] ‘tatu’
VOGAIS NASAIS
/ã/
[ã]
Sílaba tônica
[piˈã] ‘uma doença’
/ẽ/
[ɛ̃]
Sílaba tônica
[ɛˈɛ̃] ‘doce’, ‘salgado’
/ĩ/
[ĩ]
Sílaba tônica
[ˈtĩ] ‘nariz’
/õ/
[ɔ̃]
Sílaba tônica
[ˈɾɔ̃] ‘pois’, ‘então’
/ũ/
[ũ]
Sílaba tônica
[ˈɲũ] ‘campo
/ɨ̃/
[ɨ̃]
Sílaba tônica
[ɨˈβɨ̃j] ‘parte interior oca’
SEMIVOGAIS
/j/
[j]
Início, meio e fim de palavra
[ajɛˈβɨɾ] ‘eu volto’
[ʒ]
Início e meio de palavra
[aʒɛˈβɨɾ] ‘eu volto’
[ɲ]
Início e meio de palavra
[ɲamaˈnɔ] ‘nós morremos’
/w/
[w]
Início, meio e fim de palavra
[ˈkwab] ‘atravessar’
CONSOANTES BILABIAIS
/p/
[p]
Início e meio de palavra (enquanto realização de /p/!)
[ʃɛˈpɔ] ‘minha mão’
/b/
[β]
Início e meio de palavra
[aˈβa] ‘homem’
[b]
Final de palavra, em VL com [p]
[ʃɛˈɾub] ‘meu pai’
[p]
Final de palavra, em VL com [b]
[ʃɛˈɾup] /ʃerub/ ‘meu pai’
/m/
[m]
Início meio e fim de plavra
[aʒatiˈmuŋ] ‘eu balanço’
[mb]
Início e meio de palvra.
[tɛˈmbɛ] ‘lábio inferior’
CONSOANTES DENTAIS
/t/
[t]
Início e meio de palavra (enquanto realização de /t/!)
[ʃɛkaˈtu] ‘sou bom’
/ɾ/
[ɾ]
Início, meio e fim de palavra
[ʃɛkaˈɾu] ‘sou comilão’
[t]
Fim de palavra, em VL com [ɾ]
[mɔsaˈpɨt] /mosapɨr/ ‘três’
/n/
[n]
Início meio e fim de palavra
[iˈnĩ] ‘rede de dormir’
[ⁿd]
Início e meio de palavra
[kɔmaˈⁿda] ‘feijão’
/s/
[s]
Início e meio de palavra
[sɛˈtɛ] ‘seu corpo’
CONSOANTES PALATAIS
/ʃ/
[ʃ]
Início e meio de palavra
[iˈʃɛ] ‘eu’
[tʃ]
Início de palavra, em VL com [ʃ]
[tʃjaˈsɔ] (ou [ʃjaˈsɔ]) <t’îasó> ‘vamos!’
CONSOANTES VELARES
/k/
[k]
Início, meio e fim de palavra
[ˈakə] ‘chifre’
/ŋ/
[ŋ]
Meio e fim de palavra
[ˈaŋə] ‘alma’
[ŋg]***
Meio de palavra
[puˈŋga] ‘inchado’
***[ə]: vogal oral média central não arredondada ***[ɨ]: Não se sabe por que Rodrigues chama essa vogal de posterior (hinterer Vokal) e não central, como seria de se esperar. No AFI, a vogal oral alta posterior não arredondada é representada por [ɯ]. ***[ŋg]: Rogrigues afirma não ser possível determinar se o grafema <ng> das fontes corresponde a [ŋg] ou [ŋ]. Portanto, o autor considera a existência do fone [ŋg] apenas como provável.
Legenda:
VL = variação livre DC = distribuição complementar
Em vez de explicar em maiores detalhes cada um dos fonemas, o que seria por demais extenso, é mais vantajoso deixar de lado o que não é controverso e se focar apenas no que destoa das outras fonologias do tupi.
O que não há
Na fonologia apresentada na tese de Aryon, não encontramos:
A consoante oclusiva glotal [ʔ]: nenhuma menção ou alusão à sua existência. — Isso se deve provavelmente à decisão de Rodrigues de se basear exclusivamente nas fontes selecionadas, sem levar em consideração outras línguas geneticamente próximas, como o guarani. Os autores aduzidos na tese não abordam o fonema em questão.
[ɡʷ] como possível realização de /w/
O <y> enquanto semivogal (AFI: [ɰ]), representada na grafia de Navarro por <ŷ>, como em <apŷaba>.
[ʃ] enquanto realização de /s/ após vogais altas não arredondadas. — Erro grave da parte do autor. Tomemos como exemplo as frases Maria supé ‘para Maria’ e i xupé ‘para ele’. Se [ʃ], representado por <x>, não pode ser alofone de /s/ (como afirma explicitamente Rodrigues), teríamos de admitir que xupé e supé são duas posposições diferentes, sendo que ambas têm o mesmo significado. Evidentemente, tal conclusão não seria sensata, tampouco prática.
[u] como possível realização de /ɨ/. — Em ambientes pɨCu, onde C é uma consoante qualquer, pode haver alternância entre [ɨ] e [u] (pytuna, putuna, etc). Aryon trata variações desse tipo como um fenômeno de assimilação.
/ɲ/ enquanto fonema independente (e não apenas como alofone de /j/)
O que há
A seguir há os fones que não costumam aparecer em outras descrições da fonologia do tupi. Podemos mencionar:
[ə] átono em final de palavra ([‘aβə] em vez de [‘aβa]). — Tanto as fontes portuguesas quanto as francesas (e também a fonte alemã) indicariam a existência de [ə], para o autor. Nas fontes portuguesas, o <a> em final de palavra teria som de [ə]. O mesmo se pode dizer do <e> ao final de palavra nas fontes francesas, que na época era pronunciado (hoje em dia é mudo).
[b] oclusivo em final de palavra. — Na grafia portuguesa da época, <b> representava [β] em início de palavra e em contexto intervocálico. Podemos supor, portanto, que Rodrigues considerou um <b> em final de palavra como representação da consoante bilabial oclusiva [b]. O autor não é claro a esse respeito.
A consoante africada [tʃ] — conforme Rodrigues, o fone foi registrado apenas por Anchieta. Argumenta Rodrigues que o grafema <ch> na Arte só pode se referir ao som africado em questão, de acordo com a fonologia do português da época. Conforme o próprio Anchieta, “alguns pronunciam xiâ [ʃja], ou chiâ [tʃja] no lugar de tia [ti.a], dissílabo, como xiaçô ou chiaçô para tiaçô, ‘vamos!’ […]” (folha 23 e verso)
A influência indígena – mais especificamente tupi – na formação do Brasil se faz presente em nomes de cidades, vilas, rios e regiões; em suma, na sua toponímia. Meu objetivo neste post é apresentar a forma que desenvolvi para explicar os topônimos brasileiros de origem tupi e a maneira pela qual eles se constituem. Devendo o conhecimento básico de tupi deveria ser acessível a todos, é necessária uma forma fácil de explicar o básico da gramática da língua indígena que esteve presente ao longo da costa brasileira, e que mais tarde foi levada ao interior, dando nome a diversas localidades por todo o país.
Consoante com essa meta, pretendo apresentar uma forma mais lúdica e intuitiva de entender como são formados os topônimos brasileiros de origem tupi (e, também, outros tupinismos). Primeiramente, é preciso saber que a maioria dos topônimos de origem indígnea são composições, ou seja, são constituídos por duas ou mais palavras que se fundem. Em segundo lugar, é necessário conhecer os dois tipos de composição em tupi, e em qual deles ocorre a inversão dos termos que a compõem.
A composição em tupi
O tupi apresenta características de uma língua polissintética: é comum que elementos se juntem e sejam assimilados em uma só palavra. Por exemplo, ‘ypiranga é a junção de ‘y, rio, com pirang, vermelho (e o sufixo -a, que será explicado mais adiante). A palavra resultante – rio vermelho – forma uma unidade conceitual, sendo um substantivo como outro qualquer. Há dois tipos de composição em tupi: as atributivas e as com relação genitiva:
Composição atributiva: composta geralmente por substantivo + adjetivo.Mantém suas partes na mesma ordem que o português, com o núcleo à esquerda.Composição com relação genitiva: quanto há substantivo + substantivo. Nela, há a ideia de posse, origem. Há a inversão dos termos, em relação ao português: o núcleo aparece ao fim.
A forma de explicar os topônimos aqui apresentada, com vistas a torná-los mais intuitivos, baseia-se na inversão (ou não) dos termos da composição, como indicam as setas acima.Conhecendo os dois tipos de composição, já é possível entender a maioria dos topônimos originados nessa língua indígena, pois quase todos os tipos de topônimos listados abaixo são composições, apresentando variações de outra espécie (há sufixos que podem ser acrescentados à composição).
Antes de prosseguirmos, perceba o leitor que a comparação com o português é feita meramente para fins didáticos. Evidentemente, não há razão para tratar as ordem que os componentes do sintagma assumem na lingua portuguesa (núcleo à esquerda) como o padrão.
Tipos de topônimos
Os nomes de lugares, cidades, rios etc. podem ser agrupados conforme os padrões morfológicos que apresentam: São eles:
1. Substantivos simples
Primeiramente, há topônimos cujo étimo é apenas substantivo simples, sem composição, como Paissandu, Abaré, Avaré, e outros.
2. Composições com relação genitiva (substantivo + substantivo)
Uma relação genitiva estabelece uma relação de posse, origem, pertencimento. Nelas, os termos da composição vêm em ordem invertida em relação ao que seria normal em português. Ou seja, o núcleo vem em posição final, enquanto seu complemento (das onças, das araras) vem à esquerda.
Nos topônimos, as relações genitivas ocorrem entre dois substantivos. (Há outros tipos de relação genitiva no tupi, mas elas não se fazem presentes na toponímia.)
Este tipo de composição ocorre com um substantivo + adjetivo. Neste caso, não há inversão dos termos. Isto é, eles aparecem na mesma ordem que teriam em português, com o núcleo no início.
Cabe notar que que há composições atributivas que contêm dois substantivos, mas sua presença na toponímia brasileira é pequena ou mesmo nula.
4. Composições atributivas com o sufixo -a
Trata-se, aqui, de composições atributivas iguais às do item anterior, sendoa única diferença o sufixo nominalizador -a. Em tupi, todos os substantivos terminam em vogais. Caso terminem em consonante, deve-se acrescentar o referido sufixo.
5. Composições com tiba, tuba, tiva, tuva, etc.
Trata-se aqui de composições com relação genitiva, idêntica àquelas vistas no item 2, ao menos em se tratando de sua morfologia. Contudo, os topônimos com tiba merecem um item à parte (1) por serem particularmente frequentes e (2) por serem traduzidos de um modo peculiar.
Em tupi, tyba (pronúncia: [ˈtɨβa]) é a forma infinitiva ou substantiva do verbo tyb, que significa existir. Tyba, portanto, pode ser traduzido por ocorrência, existência, ajuntamento.
Tyba, portanto, não é um sufixo. Todavia, traduz-se melhor pelo sufixo -al do português. Pinhal é uma tradução mais natural para Curitiba do que “ajuntamento de pinheiros”, a qual seria por demais ao pé da letra. Todavia, há casos em que traduções mais idiomáticas como as de cima não são possíveis. Por exemplo, Itaquaquecetuba (takûakysé + tyba) só pode ser traduzido por ajuntamento de taquaras-faca (espécie de taquara que pode ser usada como faca quando rachada).
6. Topônimos com a posposição -pe
Em tupi, uma posposição cumpre a mesma função que uma preposição do português. No caso, -pe significa ‘em’ ou ‘para’. Topônimos com a posposição -pe, conforme demonstra Navarro, estão entre as mais antigas do Brasil, e foram atribuídos pelos próprios indígenas, provavelmente em tempos pré-cabralinos, em alguns casos.
Na toponímia brasileira, o -pe ocorre sobretudo em composições com relação genitiva. Portanto, esse padrão morfológico segue a mesma lógica dos topônimos com esse tipo de composição, sendo a única diferença a partícula ao final.
Como se pode perceber, uma tradução literal, como “no rio dos siris”, não parece fazer muito sentido quando se trata de um nome de um lugar. A razão para a presença do -pe em alguns topônimos é um assunto que merece um post à parte.
7. Substantivo + verbo com -aba
Menos comuns, porém importantes, são as composições do tipo substantivo + verbo com -saba, como Piracicaba. Neste exemplo, observa-se a junção de pirá (peixe) e sykaba (lugar de chegada). Esta última palavra não é monomorfêmica: ela pode ser analisada da seguinte forma:
syk, chegar
-ab, sufixo circunstancial; na toponímia, indica circunstância de lugar
-a, sufixo nominalizador
Deste modo, sykaba significa literalmente “lugar de chegar”, estando em relação genitiva com pirá, peixe, resultando em “lugar de chegada dos peixes”. Em tupi, a frase seria: pirá sykaba.
8. Substantivo com o sufixo aumentativo (-guaçu) e diminutivo (-i)
Trata-se aqui de um dos poucos casos em que não há, a rigor, uma composição. Embora frequentemente traduzido por “grande”, -guaçu é na verdade um sufixo, cumprindo uma função análoga ao -ão do português. O mesmo vale para o sufixo -i, que não é o mesmo que mirim, já que este último é um adjetivo, e aquele um sufixo que forma o grau diminutivo.
Ocorre aqui algo semelhante ao caso dos noomes com tiba (e derivados). Enquanto tiba é um substantivo que pode ser traduzido por um sufixo (-al), -guaçu é um sufixo que podeser traduzido como um adjetivo. É preciso diferenciar a função que um morfema tem em tupi, e a tradução mais adequada deste mesmo morfema, que em português pode ser uma palavra de classe gramatical diferente, ou ainda: um morfema lexical em tupi pode ser traduzido por um morfema gramtical em tupi, ou vice-versa.
Conclusão
A toponímia é um terreno particularmente fértil para o estudo do tupi, já que ela evidencia a gramática do idioma. É preciso ter em mente que o exposto acima se trata de uma simplificação com vistas à uma compreensão mais rápida e fácil por pessoas que não estudam tupi, e que apenas podem vir a ter curiosidade de saber o que significa o nome de sua cidade. Tais formas esquemáticas de apresentação se fazem necessárias se o objetivo é a popularização do idioma cujo conhecimento “sequer superficial faz parte da cultura nacional”, nas palavras de Lemos Barbosa.