O nome Goitacá e sua pronúncia com ‘o’

Há diversos casos em que a escrita de uma palavra afeta sua pronúncia. Não se trata de um caso de mudança linguística mais ou menos espontânea, natural, mas algo que surgiu devido à influência da língua escrita, isto é, devido aos símbolos arbitrários pelos quais optamos por escrever as palavras. Um desses casos está no meu post anterior sobre o bairro de M’Boi Mirim, em São Paulo, cujo nome passou a ser pronunciado “eme-boi mirim”, por ser grafado deste modo.

Algo semelhante se passou com os GOITACÁS, GOITACAZES, e variantes. Tal foi o nome de uma nação indígena “tapuia” (isto é, não tupi-guarani) encontrada pelos europeus no século XVI. Tinham, portanto, língua diferente daquela que os colonizadores encontraram por toda a costa brasileira – o tupi. Não sabemos qual língua seja essa, pois não nos foram legados registros.

GOITACÁ vem do tupi guaitaká. É desta forma que diversos autores do século XVI registraram o nome da nação: Anchieta, Jean de Lery, Hans Staden, todos eles escreveram seu nome com ‘u’. Como o nome se tornou, então, goitacá?

A resposta para isso está na ortografia. Mais precisamente, a ortografia do português arcaico. No século XVI (e talvez mais tarde, certamente), havia duas formas de escrever a semivogal ‘u’ (também chamada de ‘u’ breve, fonema encontrado em palavras como guaraná, aguentar, água, e eu). Hoje, escrevemo-la sempre com ‘u’, mas, no século XVI, admitiam-se duas grafias: ora com ‘u’, ora com ‘o’. Assim temos palavras como “ágoa” e “agua” para água, “goaçu” e “guaçu” para o sufixo aumentativo do tupi, guasu (que deu origem a topônimos como Iguaçu), etc.

Foi esta a origem – acredito eu – de goitacá. Por influência de grafias outras do nome, acabou por se consolidar uma forma que não tem embasamento nos autores que descreveram o tupi. A rigor, o nome da nação nunca foi pronunciado com ‘o’. Ao menos não originalmente. Em tupi, só a forma guaitaká, com ‘u’, é atestada.

Tal caso está longe de ser único. Os GUAIANÁS, outra nação tapuia, também possuem nomes alternativos: GOAYANÃ, GOYANÁ, entre outros. Neste caso, o nome que se aproxima do original – guaianã, do tupi – acabou por prevalecer sobre os demais. O próprio nome GOIÁS, estado do Brasil, pode ter origem em um suposto *guaiá, nome de nação indígena, em uma das propostas para a origem do nome.

Para concluir: qual o significado, afinal, de guaitaká? O étimo tupi é de difícil decifração. Haveria nele o verbo guatá: caminhar? Por eles serem nômades e andarilhos? Não sabemos.

Fontes

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Phonologie der Tupinambá-Sprache. Universidade de Hamburgo, Alemanha, 1958. (Para a ortografia portuguesa do século XVI)

NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionario de Tupi Antigo: a língua indígena clássica do Brasil. (Para os nomes em tupi)

A toponímia indígena no Brasil: padrões morfológicos

A influência indígena – mais especificamente tupi – na formação do Brasil se faz presente em nomes de cidades, vilas, rios e regiões; em suma, na sua toponímia. Meu objetivo neste post é apresentar a forma que desenvolvi para explicar os topônimos brasileiros de origem tupi e a maneira pela qual eles se constituem. Devendo o conhecimento básico de tupi deveria ser acessível a todos, é necessária uma forma fácil de explicar o básico da gramática da língua indígena que esteve presente ao longo da costa brasileira, e que mais tarde foi levada ao interior, dando nome a diversas localidades por todo o país.

Consoante com essa meta, pretendo apresentar uma forma mais lúdica e intuitiva de entender como são formados os topônimos brasileiros de origem tupi (e, também, outros tupinismos). Primeiramente, é preciso saber que a maioria dos topônimos de origem indígnea são composições, ou seja, são constituídos por duas ou mais palavras que se fundem. Em segundo lugar, é necessário conhecer os dois tipos de composição em tupi, e em qual deles ocorre a inversão dos termos que a compõem.

A composição em tupi

O tupi apresenta características de uma língua polissintética: é comum que elementos se juntem e sejam assimilados em uma só palavra. Por exemplo, ‘ypiranga é a junção de ‘y, rio, com pirang, vermelho (e o sufixo -a, que será explicado mais adiante). A palavra resultante – rio vermelho – forma uma unidade conceitual, sendo um substantivo como outro qualquer. Há dois tipos de composição em tupi: as atributivas e as com relação genitiva:

Composição atributiva: composta geralmente por substantivo + adjetivo.Mantém suas partes na mesma ordem que o português, com o núcleo à esquerda.
Composição com relação genitiva: quanto há substantivo + substantivo. Nela, há a ideia de posse, origem. Há a inversão dos termos, em relação ao português: o núcleo aparece ao fim.

A forma de explicar os topônimos aqui apresentada, com vistas a torná-los mais intuitivos, baseia-se na inversão (ou não) dos termos da composição, como indicam as setas acima. Conhecendo os dois tipos de composição, já é possível entender a maioria dos topônimos originados nessa língua indígena, pois quase todos os tipos de topônimos listados abaixo são composições, apresentando variações de outra espécie (há sufixos que podem ser acrescentados à composição).

Antes de prosseguirmos, perceba o leitor que a comparação com o português é feita meramente para fins didáticos. Evidentemente, não há razão para tratar as ordem que os componentes do sintagma assumem na lingua portuguesa (núcleo à esquerda) como o padrão.

Tipos de topônimos

Os nomes de lugares, cidades, rios etc. podem ser agrupados conforme os padrões morfológicos que apresentam: São eles:

1. Substantivos simples

Primeiramente, há topônimos cujo étimo é apenas substantivo simples, sem composição, como Paissandu, Abaré, Avaré, e outros.

2. Composições com relação genitiva (substantivo + substantivo)

Uma relação genitiva estabelece uma relação de posse, origem, pertencimento. Nelas, os termos da composição vêm em ordem invertida em relação ao que seria normal em português. Ou seja, o núcleo vem em posição final, enquanto seu complemento (das onças, das araras) vem à esquerda.

Nos topônimos, as relações genitivas ocorrem entre dois substantivos. (Há outros tipos de relação genitiva no tupi, mas elas não se fazem presentes na toponímia.)

3. Composições atributivas (substantivo + adjetivo)

Este tipo de composição ocorre com um substantivo + adjetivo. Neste caso, não há inversão dos termos. Isto é, eles aparecem na mesma ordem que teriam em português, com o núcleo no início.

Cabe notar que que há composições atributivas que contêm dois substantivos, mas sua presença na toponímia brasileira é pequena ou mesmo nula.

4. Composições atributivas com o sufixo -a

Trata-se, aqui, de composições atributivas iguais às do item anterior, sendoa única diferença o sufixo nominalizador -a. Em tupi, todos os substantivos terminam em vogais. Caso terminem em consonante, deve-se acrescentar o referido sufixo.

5. Composições com tiba, tuba, tiva, tuva, etc.

Trata-se aqui de composições com relação genitiva, idêntica àquelas vistas no item 2, ao menos em se tratando de sua morfologia. Contudo, os topônimos com tiba merecem um item à parte (1) por serem particularmente frequentes e (2) por serem traduzidos de um modo peculiar.

Em tupi, tyba (pronúncia: [ˈtɨβa]) é a forma infinitiva ou substantiva do verbo tyb, que significa existir. Tyba, portanto, pode ser traduzido por ocorrência, existência, ajuntamento.

Tyba, portanto, não é um sufixo. Todavia, traduz-se melhor pelo sufixo -al do português. Pinhal é uma tradução mais natural para Curitiba do que “ajuntamento de pinheiros”, a qual seria por demais ao pé da letra. Todavia, há casos em que traduções mais idiomáticas como as de cima não são possíveis. Por exemplo, Itaquaquecetuba (takûakysé + tyba) só pode ser traduzido por ajuntamento de taquaras-faca (espécie de taquara que pode ser usada como faca quando rachada).

6. Topônimos com a posposição -pe

Em tupi, uma posposição cumpre a mesma função que uma preposição do português. No caso, -pe significa ‘em’ ou ‘para’. Topônimos com a posposição -pe, conforme demonstra Navarro, estão entre as mais antigas do Brasil, e foram atribuídos pelos próprios indígenas, provavelmente em tempos pré-cabralinos, em alguns casos.

Na toponímia brasileira, o -pe ocorre sobretudo em composições com relação genitiva. Portanto, esse padrão morfológico segue a mesma lógica dos topônimos com esse tipo de composição, sendo a única diferença a partícula ao final.

Como se pode perceber, uma tradução literal, como “no rio dos siris”, não parece fazer muito sentido quando se trata de um nome de um lugar. A razão para a presença do -pe em alguns topônimos é um assunto que merece um post à parte.

7. Substantivo + verbo com -aba

Menos comuns, porém importantes, são as composições do tipo substantivo + verbo com -saba, como Piracicaba. Neste exemplo, observa-se a junção de pirá (peixe) e sykaba (lugar de chegada). Esta última palavra não é monomorfêmica: ela pode ser analisada da seguinte forma:

  • syk, chegar
  • -ab, sufixo circunstancial; na toponímia, indica circunstância de lugar
  • -a, sufixo nominalizador

Deste modo, sykaba significa literalmente “lugar de chegar”, estando em relação genitiva com pirá, peixe, resultando em “lugar de chegada dos peixes”. Em tupi, a frase seria: pirá sykaba.

8. Substantivo com o sufixo aumentativo (-guaçu) e diminutivo (-i)

Trata-se aqui de um dos poucos casos em que não há, a rigor, uma composição. Embora frequentemente traduzido por “grande”, -guaçu é na verdade um sufixo, cumprindo uma função análoga ao -ão do português. O mesmo vale para o sufixo -i, que não é o mesmo que mirim, já que este último é um adjetivo, e aquele um sufixo que forma o grau diminutivo.

Ocorre aqui algo semelhante ao caso dos noomes com tiba (e derivados). Enquanto tiba é um substantivo que pode ser traduzido por um sufixo (-al), -guaçu é um sufixo que podeser traduzido como um adjetivo. É preciso diferenciar a função que um morfema tem em tupi, e a tradução mais adequada deste mesmo morfema, que em português pode ser uma palavra de classe gramatical diferente, ou ainda: um morfema lexical em tupi pode ser traduzido por um morfema gramtical em tupi, ou vice-versa.

Conclusão

A toponímia é um terreno particularmente fértil para o estudo do tupi, já que ela evidencia a gramática do idioma. É preciso ter em mente que o exposto acima se trata de uma simplificação com vistas à uma compreensão mais rápida e fácil por pessoas que não estudam tupi, e que apenas podem vir a ter curiosidade de saber o que significa o nome de sua cidade. Tais formas esquemáticas de apresentação se fazem necessárias se o objetivo é a popularização do idioma cujo conhecimento “sequer superficial faz parte da cultura nacional”, nas palavras de Lemos Barbosa.

Karukasy: melancolia (e saudades) em tupi antigo

O tupi antigo foi a principal língua falada no Brasil dos primeiros séculos. Esteve presente em toda a costa brasileira e forneceu incontáveis topônimos e antropônimos para o português brasileiro.

Graças principalmente ao registro do idioma feito pelos jesuítas, temos um ótimo conhecimento dessa língua nativa tão importante, bem como da etimologia de alguns de seus vocábulos.

A etimologia das palavras pode contar uma história. É o caso da palavra karukasy, que pode ser traduzida por melancolia, ou mesmo saudades. Ela é um substantivo composto, assim como como paraquedas ou guarda-chuva.

Karuka significa, simplesmente, a tarde. Essa palavra passou para o português brasileiro como caruca, possuindo o mesmo significado e sendo falada em algumas regiões do Brasil.

Depois vem tasy, que é dor. Por ser um substantivo pluriforme (não cabe aqui entrar em detalhes gramaticais), ele perde o t quando entra em composição.

Justapostas, as palavras formam uma relação genitiva que significa: a dor da tarde! Para expressar a ideia de melancolia, os tupis faziam uso dessa comparação. Xe karukasy: eu estou triste (literalmente: eu tenho a dor da tarde). Outra tradução possível é saudades: xe karukasy Maria resé: eu tenho saudades da Maria.

Isso mostra que o abatimento que muitos sentem ao fim do dia talvez seja um fenômeno universal, que ultrapassa culturas e épocas.

Fonte: NAVARRO, E. Dicionário de Tupi Antigo. São Paulo: Global Editora, 2013

Modos verbais em tupi antigo

Os modos verbais em tupi antigo, bem como a conjugação em cada um deles, são apresentados de forma sumária na tabela a seguir..

A principal classificação dos verbos em tupi é entre suas formas nominais e verbais. A principal diferença entre elas é a morfologia. Alguns verbos são chamados de ditemáticos. Manõ, morrer, vira e’õ, em suas formas nominais. Contudo, a maioria dos verbos são monotemáticos, como é o caso dos verbos da tabela.

Tal sistematização dos modos verbais não é facilmente encontrada na internet, e minha intenção é suprir essa lacuna. Não pretendo aqui fornecer mais que uma breve explicação de cada um dos modos, pois a gramática do tupi é complexa (o curso do Navarro tem mais de 600 páginas), e a maioria dos verbos sofrem intricadas transformações fonéticas que devem ser estudadas com cuidado.

Por isso, escolhi – com certa dificuldade – verbos que são inteiramente regulares e que não apresentam tais transformações. Como as formas verbais são as mais simples, começemos por elas.

Modo indicativo

Igual ao indicativo do português. Detalhe: a mesma conjugação vale para todos os tempos verbais. Portanto, ixé a-gûatá pode significar eu caminho, eu caminhei, ou eu caminharei (neste último caso usa-se a partícula enclítica -ne para indicar o futuro, mas ela não faz parte da conjugação verbal e pode estar afastada do verbo).

Modo permissivo

Semelhante ao subjuntivo do português. Que eu caminhe, que tu caminhes, etc. O modo permissivo pode também suprir as lacunas do imperativo, que só possui a segunda pessoa do singular e do plual. Isto é, para expressar uma ordem ou sugestão em primeira pessoa, podemos fazer uso do permissivo: t’îasó akûeîpe: vamos ali.

Modo imperativo

Como já dito, ocorre na segunda pessoa do singular e do plural. É semelhante à conjugação dessas mesmas pessoas no modo indicativo, com a diferença de que o ere- vira e- no singular. Ere-gûatá, tu caminhas. E-gûatá! Caminha!

Gerúndio dos verbos intransitivos

Recebem prefixos número-pessoais assim como os demais modos das formas verbais. Contudo, a primeira e a segunda pessoa do singular mudam: gûi-gûatá e e-gûatá, respectivamente. O resto segue o padrão do modo indicativo.

Há mais de uma maneira de formar o gerúndio. Os verbos terminados em vogais recebem -abo ou -bo ao final. Os terminados em consoantes recebem -a. Existe ainda um caso não contemplado na tabela: o dos verbos terminados em -r. Estes perderão essa letra no gerúndio: ker (dormir) vira ké (dormindo).

Modo indicativo circunstancial

Nele, usa-se a forma nominal do verbo. As formas nominais não apresentam prefixos número-pessoais.

O indicativo circunstancial possui a mesma função do indicativo, só que é usado quando uma circunstância (tempo, lugar, modo, etc) vem antes do sujeito da oração. Poranto: ixé a-gûatá kori, eu caminho hoje (modo indicativo normal; circunstância vem depois). Kori xe gûatáû: hoje eu caminho (circunstância vem antes do sujeito). Percebe-se também que os pronomes pessoais usados no indicativo circunstancial são os de segunda classe; por isso ixé vira xe.

Assim como o gerúndio, o circunstancial é formado seguindo dois padrões: os verbos terminados em vogal receberão ; os terminados em consoante, -i.

Com pronomes objetivos tônicos

Para compreender esse modo, é preciso estar mais adiantado nos estudos de tupi antigo, e não há forma simples de explicá-lo. Basta dizer aqui que este modo se aplica quando o objeto não for de terceira pessoa. Nesses casos, será usada a forma básica do verbo, sem nenhum tipo de acréscimo ou modificação. Exemplo: ixé oro-îuká, eu te mato. Note que oro- aqui não é um prefixo número-pessoal como no caso indicativo, mas um pronome pessoal oblíquo (ou objetivo): te.

Infinitivo

É a forma substantiva do verbo. Todos os substantivos em tupi terminam em vogal. Se o verbo terminar em consoante, receberá o sufuxo -a. Portanto, nhana (do verbo nhan) significa o correr, a corrida; gûatá, o caminhar, a caminhada.

Gerúndio dos verbos transitivos

Sofre as mesmas modificações do gerúndio dos verbos intransitivos, mas não apresenta os prefixos número-pessoais.

O gerúndio tem duas finalidades principais: transmitir a ideia de continuidade (como em português) e de finalidade. Portanto, (ixé) Pedro îukábo pode ser traduzido para “matando (eu) Pedro” ou “para eu matar Pedro”. A-îur Pedro îukábo: vim para matar Pedro.