A toponímia indígena no Brasil: padrões morfológicos

A influência indígena – mais especificamente tupi – na formação do Brasil se faz presente em nomes de cidades, vilas, rios e regiões; em suma, na sua toponímia. Meu objetivo neste post é apresentar a forma que desenvolvi para explicar os topônimos brasileiros de origem tupi e a maneira pela qual eles se constituem. Devendo o conhecimento básico de tupi deveria ser acessível a todos, é necessária uma forma fácil de explicar o básico da gramática da língua indígena que esteve presente ao longo da costa brasileira, e que mais tarde foi levada ao interior, dando nome a diversas localidades por todo o país.

Consoante com essa meta, pretendo apresentar uma forma mais lúdica e intuitiva de entender como são formados os topônimos brasileiros de origem tupi (e, também, outros tupinismos). Primeiramente, é preciso saber que a maioria dos topônimos de origem indígnea são composições, ou seja, são constituídos por duas ou mais palavras que se fundem. Em segundo lugar, é necessário conhecer os dois tipos de composição em tupi, e em qual deles ocorre a inversão dos termos que a compõem.

A composição em tupi

O tupi apresenta características de uma língua polissintética: é comum que elementos se juntem e sejam assimilados em uma só palavra. Por exemplo, ‘ypiranga é a junção de ‘y, rio, com pirang, vermelho (e o sufixo -a, que será explicado mais adiante). A palavra resultante – rio vermelho – forma uma unidade conceitual, sendo um substantivo como outro qualquer. Há dois tipos de composição em tupi: as atributivas e as com relação genitiva:

Composição atributiva: composta geralmente por substantivo + adjetivo.Mantém suas partes na mesma ordem que o português, com o núcleo à esquerda.
Composição com relação genitiva: quanto há substantivo + substantivo. Nela, há a ideia de posse, origem. Há a inversão dos termos, em relação ao português: o núcleo aparece ao fim.

A forma de explicar os topônimos aqui apresentada, com vistas a torná-los mais intuitivos, baseia-se na inversão (ou não) dos termos da composição, como indicam as setas acima. Conhecendo os dois tipos de composição, já é possível entender a maioria dos topônimos originados nessa língua indígena, pois quase todos os tipos de topônimos listados abaixo são composições, apresentando variações de outra espécie (há sufixos que podem ser acrescentados à composição).

Antes de prosseguirmos, perceba o leitor que a comparação com o português é feita meramente para fins didáticos. Evidentemente, não há razão para tratar as ordem que os componentes do sintagma assumem na lingua portuguesa (núcleo à esquerda) como o padrão.

Tipos de topônimos

Os nomes de lugares, cidades, rios etc. podem ser agrupados conforme os padrões morfológicos que apresentam: São eles:

1. Substantivos simples

Primeiramente, há topônimos cujo étimo é apenas substantivo simples, sem composição, como Paissandu, Abaré, Avaré, e outros.

2. Composições com relação genitiva (substantivo + substantivo)

Uma relação genitiva estabelece uma relação de posse, origem, pertencimento. Nelas, os termos da composição vêm em ordem invertida em relação ao que seria normal em português. Ou seja, o núcleo vem em posição final, enquanto seu complemento (das onças, das araras) vem à esquerda.

Nos topônimos, as relações genitivas ocorrem entre dois substantivos. (Há outros tipos de relação genitiva no tupi, mas elas não se fazem presentes na toponímia.)

3. Composições atributivas (substantivo + adjetivo)

Este tipo de composição ocorre com um substantivo + adjetivo. Neste caso, não há inversão dos termos. Isto é, eles aparecem na mesma ordem que teriam em português, com o núcleo no início.

Cabe notar que que há composições atributivas que contêm dois substantivos, mas sua presença na toponímia brasileira é pequena ou mesmo nula.

4. Composições atributivas com o sufixo -a

Trata-se, aqui, de composições atributivas iguais às do item anterior, sendoa única diferença o sufixo nominalizador -a. Em tupi, todos os substantivos terminam em vogais. Caso terminem em consonante, deve-se acrescentar o referido sufixo.

5. Composições com tiba, tuba, tiva, tuva, etc.

Trata-se aqui de composições com relação genitiva, idêntica àquelas vistas no item 2, ao menos em se tratando de sua morfologia. Contudo, os topônimos com tiba merecem um item à parte (1) por serem particularmente frequentes e (2) por serem traduzidos de um modo peculiar.

Em tupi, tyba (pronúncia: [ˈtɨβa]) é a forma infinitiva ou substantiva do verbo tyb, que significa existir. Tyba, portanto, pode ser traduzido por ocorrência, existência, ajuntamento.

Tyba, portanto, não é um sufixo. Todavia, traduz-se melhor pelo sufixo -al do português. Pinhal é uma tradução mais natural para Curitiba do que “ajuntamento de pinheiros”, a qual seria por demais ao pé da letra. Todavia, há casos em que traduções mais idiomáticas como as de cima não são possíveis. Por exemplo, Itaquaquecetuba (takûakysé + tyba) só pode ser traduzido por ajuntamento de taquaras-faca (espécie de taquara que pode ser usada como faca quando rachada).

6. Topônimos com a posposição -pe

Em tupi, uma posposição cumpre a mesma função que uma preposição do português. No caso, -pe significa ‘em’ ou ‘para’. Topônimos com a posposição -pe, conforme demonstra Navarro, estão entre as mais antigas do Brasil, e foram atribuídos pelos próprios indígenas, provavelmente em tempos pré-cabralinos, em alguns casos.

Na toponímia brasileira, o -pe ocorre sobretudo em composições com relação genitiva. Portanto, esse padrão morfológico segue a mesma lógica dos topônimos com esse tipo de composição, sendo a única diferença a partícula ao final.

Como se pode perceber, uma tradução literal, como “no rio dos siris”, não parece fazer muito sentido quando se trata de um nome de um lugar. A razão para a presença do -pe em alguns topônimos é um assunto que merece um post à parte.

7. Substantivo + verbo com -aba

Menos comuns, porém importantes, são as composições do tipo substantivo + verbo com -saba, como Piracicaba. Neste exemplo, observa-se a junção de pirá (peixe) e sykaba (lugar de chegada). Esta última palavra não é monomorfêmica: ela pode ser analisada da seguinte forma:

  • syk, chegar
  • -ab, sufixo circunstancial; na toponímia, indica circunstância de lugar
  • -a, sufixo nominalizador

Deste modo, sykaba significa literalmente “lugar de chegar”, estando em relação genitiva com pirá, peixe, resultando em “lugar de chegada dos peixes”. Em tupi, a frase seria: pirá sykaba.

8. Substantivo com o sufixo aumentativo (-guaçu) e diminutivo (-i)

Trata-se aqui de um dos poucos casos em que não há, a rigor, uma composição. Embora frequentemente traduzido por “grande”, -guaçu é na verdade um sufixo, cumprindo uma função análoga ao -ão do português. O mesmo vale para o sufixo -i, que não é o mesmo que mirim, já que este último é um adjetivo, e aquele um sufixo que forma o grau diminutivo.

Ocorre aqui algo semelhante ao caso dos noomes com tiba (e derivados). Enquanto tiba é um substantivo que pode ser traduzido por um sufixo (-al), -guaçu é um sufixo que podeser traduzido como um adjetivo. É preciso diferenciar a função que um morfema tem em tupi, e a tradução mais adequada deste mesmo morfema, que em português pode ser uma palavra de classe gramatical diferente, ou ainda: um morfema lexical em tupi pode ser traduzido por um morfema gramtical em tupi, ou vice-versa.

Conclusão

A toponímia é um terreno particularmente fértil para o estudo do tupi, já que ela evidencia a gramática do idioma. É preciso ter em mente que o exposto acima se trata de uma simplificação com vistas à uma compreensão mais rápida e fácil por pessoas que não estudam tupi, e que apenas podem vir a ter curiosidade de saber o que significa o nome de sua cidade. Tais formas esquemáticas de apresentação se fazem necessárias se o objetivo é a popularização do idioma cujo conhecimento “sequer superficial faz parte da cultura nacional”, nas palavras de Lemos Barbosa.